
Todas as coisas espalhadas pelo chão do quarto demonstravam quem eu era. Os papéis jogados, as roupas amassadas, as cartas esquecidas, a poeira acumulada faziam parte do quebra cabeça caótico e evidente que eu me tornava. Às vezes acredito que as coisas nossas não falam apenas de nós como para nós também. E aquelas coisas bagunçadas eram o sinal claro do abandono que morava em mim. As coisas não estavam certas. Eu, que sempre fui tumulto, sentia a necessidade real de colocar as coisas em gavetas, as coisas, as pessoas, os sentimentos. Cada coisa em seu lugar. Colocar na caixa dos papéis todos os papéis, separar a roupa suja, a cara limpa, as mãos vazias, jogar fora tudo aquilo que não cabia mais. Ou escolher aquilo que não serve, mas que merece ser guardado com carinho e cuidado. Talvez algumas coisas não precisem de gavetas e sim de baús. Outras muito poucas merecem redomas, relicários.
Mas com tudo confuso, jogado, é difícil definir ou perceber o que realmente tem valor. Escolher o lugar, decidir onde ir: "e você, bilhetinho tão antigo, lixeira ou coração?" E se eu errasse? E se conservasse tudo aquilo que era inútil? No fundo foi isso que sempre fiz: construi um grande museu de inutilidades. Estava cercada de tudo o que importava, mas que nada valia.
De repente tudo fez sentido. Entendendo a lógica daquele lugar foi parar concretamente na dimensão do invisível. Meu quarto se tornou onírico e enorme, eu olhava para o alto e não conseguia enxergar o fim. Era a concretude da metáfora, eu estava no Grande Museu das Inutilidades.
No Grande Museu das Inutilidades moravam coisas velhas e coisas muito muito velhas. O Grande Museu das Inutilidades tinha muitas galerias. Na Galeria das Palavras moravam os elogios não ouvidos, as lembranças escritas, os bilhetes secretos, os falsos gemidos e os amores sussurados. Na Galeria das Palavras encontrei um caderno escrito GRAÇA com uma frase entre parenteses na capa que dizia "Me senti agraciado". Dentro do caderno estavam todas as vezes em que fui segura, leve e graciosa. Santa Eu mesma Cheia de Graça. O caderno cheirava a vento e tinha gosto de boca. Quando aberto revelou o dia em que amei o Poeta, a noite em que dancei de salto pela primeira vez, meu corpo nu na piscina numa tarde muito quente.
Respirei com gosto de delícia. O caderno se fechou.
Subindo e subindo escadas me vi dentro do Salão do Movimento. Era sorte estar ali, pois como o próprio nome sugere, essa ala do museu mudava sozinha de lugar. Dentro dele estavam grandes quadros que mostravam cenas curtas, todas com a mesma legenda:
"Movimento: do latim movimentu, ato de mover, trocar de posição. Mudança pela qual um corpo está sucessivamente presente em diferentes pontos do espaço. Ação, variedade, animação"
Nos quadros a queda de bicicleta que me rendeu um braço quebrado e um gesso no braço e desenhos no gesso. As borboletas miudas e os peixes multicoloridos que me saltavam infinitos e incontroláveis dos cabelos, do vestido, do sexo, da boca, toda vez que a minha primavera chegava. A queda no cascalho. O choro no meio da chuva. O amigo que dançava balé. Estava tudo lá. Abandonei minha condição passiva de visitante e comecei a girar contagiada pelo ritmo, caindo assim na armadilha da sala que se moveu ardilosa para outro lugar.
Explorei todas as galerias. Na Ala do Desalento encontrei as cartas que nunca mandei. No Hall da Vergonha as minhas feiuras, o medo de errar, a resistencia em sorrir pras fotos, os dentes tortos.
Minhas memórias: minhas memórias inventadas. A invenção colossal da realidade.
Nas Memórias Inventadas o mercado de pulgas dançarinas, a estrela que nunca fui, o navio pirata que me carregou pelos sete mares: tudo que me tirava a certeza, tudo o que era deliciosamente fabricado. O Banquete infinito do meu desejo... Nas Memórias Inventadas uma caixa escrito Desamor e dentro dessa caixa estava você.
.Bárbara Figueira.
O texto ficou lindo, me estimulou a muitas idéias novas..muito obrigado..E Viva Cazuza com seu Museu de Inutilidades.
ResponderExcluirNossa amada, lendo este texto lembrei-me do meu carderno que ontem mesmo La estava eu a preenche-lo.
ResponderExcluirUm velho caderno onde descrevo todo o abuso que passei quando tinha 7 anos.
Do cheiro que me abraçava,da saia rodada com detalhes com rosas vermelhas, sendo que a saia era da pessoa mais querida da minha vida, descrevo cada detalhe, do olhar que me cercava,do clima que foi feito, do zíper da calça, na proteção que eu não tive. Me perguntei agora , será que meu caderno é um Grande Museu das Inutilidades ? Leandro Rocon
Obrigada, parceiros! é um desses textos que me saltam nas madrugadas, ele aconteceu ontem e eu corri pra cá... fico feliz em compartilhar isso com vocês. na realidade tenho tido muita necessidade de vocês.
ResponderExcluirEita, Leandro... esse seu caderno deve ser muito especial...
E, Leandro... o cazuza fala sobre algum museu de inutilidades? que lindo... vou procurar.
beijos