Esse trabalho é fruto reflexivo de uma experiência artística desenvolvida para a disciplina Tópicos Especiais em Artes Cênicas do curso de pós-graduação em Artes na Universidade de Brasília. A proposta inicial da disciplina era que cada aluno desenvolvesse um trabalho final teórico-prático, onde o resultado prático possuísse no mínimo cinco minutos a partir do texto O Banquete de Platão, posicionando-se a favor, contra ou inspirando-se na obra. Ainda como requisito, cada aluno deveria criar um blog sobre o processo criativo aberto ao público. Para esse trabalho, todo o registro do processo foi acompanhado no blog http://www.obanquetesaboresaber.blogspot.com tendo sido alimentado com fotos, reflexões e análises de todas as etapas. Para a montagem prática, todos os ensaios foram realizados aos sábados de 13h30 as 19h na Faculdade Dulcina de Moraes ou Universidade de Brasília.
Ao longo do texto O Banquete, Platão nos proporciona um discurso reflexivo sobre o saber do Amor. Segundo Michaelis (1998), etimologicamente o vocábulo saber vem do latim vulgar sapere, ter sabor, ter bom paladar, sentir os cheiros, de onde migrou para designar o sábio, sabidus em latim, aquele que percebe o mundo de modo organizado, usando os sentidos, a intuição. A partir dessa definição da palavra saber, a proposta do trabalho foi utilizar-se desta concepção e definição do saber que se torna sabor, sendo ele, o sabor do conhecimento, o sabor próprio, o sabor do outro, do próprio alimento, o sabor da dor, do prazer, o sabor do erótico, o sabor da competição, o sabor do desafio, trabalhando esses diversos sabores cenicamente e sensorialmente. O ponto de partida, então, é uma competição, uma experimentação, onde os performers disputam esse limite dos diversos sabores. Um banquete de objetos, comidas e corpos para se degustar, e ser degustado.
Antes de qualquer definição, reflexão ou defesa de ponto de vista, o início do processo deste trabalho foi marcado com a questão: Qual é o seu limite enquanto artista? A pesquisa que venho traçando nos meus trabalhos nesses últimos dois anos reflete essa questão do lugar do artista dentro da obra, sua relação e até mesmo sua função dentro de uma criação. Esse questionamento advém da minha experiência dentro da performance art, enquanto performer ou diretor. Minha questão é a busca dessa zona de atuação que a performance propõe, essa não-interpretação, e sim um enfoque na possibilidade expressiva do intérprete sem assumir uma criação de personagem. Para se chegar a essa construção que não venha assumir à frente do performer, começo a perceber uma metodologia de criação pré-expressiva que futuramente torna-se material dramatúrgico performativo.
A opção para estes estudos metodológicos foi a utilização de artistas com pouca ou nenhuma experiência na linguagem da performance. Participaram deste trabalho os artistas: Alexandre Fleury, Bárbara Figueira, João Gonzaga e Leandro Rocon. Dentre esses artistas, apenas a atriz Bárbara Figueira possui alguma experiência na linguagem da performance. João Gonzaga e Leandro Rocon possuem, ambos, poucas experiências teatrais, e Alexandre Fleury o mais novo do grupo, não possuí qualquer experiência teatral. A ideia de colocar um elenco heterogêneo foi misturar todas essas vivências e experiências diversas para analisar como o grupo se desenvolvia com a freqüência nos ensaios.
Qual é o seu limite enquanto artista? Essa pergunta ecoou nos celulares dos performers. Outra prática comum entre o grupo eram as PROVOCAÇÕES, que eram perguntas enviadas ao longo do dia via mensagem de celular aos performers. Essa primeira questão foi realizada para analisar como era a relação deles com o fazer artístico, sua visão e disponibilidade psicofísica. Quase todos os performers respondiam que o limite seria a nudez, ser tocado ou tocar alguém sexualmente em cena. Desde o início a trilha sonora já havia sido escolhida. Com autorização da diretora Luciana Lara da AntistatusQuo Cia de Dança, utilizei a composição Suíte Sensações do espetáculo Dalí composta no ano de 2000. O que me instigou nessa composição foi o fato dela toda ser composta por sons corporais, como pigarros, tosses, gemidos e outros. A composição remetia a quase uma experiência corporal, algo que me levasse a uma sensação de reação do corpo, ele se manifestando musicalmente. A própria música já estabelecia uma abertura à nudez, uma experiência erótica. Durante os primeiros ensaios todos ficaram cientes da exposição que fariam, pois todos foram alertados que a nudez seria uma opção futura. Outras provocações foram surgindo, por exemplo: Pra você o que é o amor?Você é competitivo?O que vem após duas garrafas de vinho?Qual é o teu sabor?O que te excita? Entre outras.
O primeiro ensaio prático foi realizado na Faculdade Dulcina de Moraes. Nossa estrutura de ensaio se dividia em alongamento, aquecimento, exercícios físicos, exercícios competitivos, e improvisos grupais. Nesse primeiro encontro a proposta foi o improviso a partir de uma barra de chocolate. Cada um com um pedaço aguardava o comando para degustar o doce, porém, com o passar dos minutos, o chocolate foi se transformando numa mistura “gosmenta” e não muito agradável. O devorar do corpo do outro foi marcado por uma ânsia de vômito da parte de alguns e prazer de outros, e com isso, era constatado que a comida, por mais bonita e apetitosa, ela ganhava outra re-significação no corpo do outro, a maior parte do tempo, não agradável.
Para o segundo ensaio a opção foi o mergulho na experiência da comida. Cada integrante deveria levar comidas diversas, cremes, óleos corporais, diversas opções, além de duas garrafas de vinho. O trabalho iniciou-se individualmente, onde cada um deveria explorar o próprio corpo, tocar-se, e reconhecer cada volume, rugosidade, pêlo, cada espaço corporal. De olhos fechados aos poucos cada um foi se tocando e aos poucos o corpo do outro. Essa experiência encontra-se completa no blog, porém foi necessário ser brevemente relatada aqui devido ao rumo que o trabalho passou a ter. O grupo deu início a uma série de experimentos que se ligavam ao prazer especifico da dor e do toque, além da verticalização da experiência com a comida. Pela primeira vez a experiência guiada junto ao vinho trouxe uma abertura que o próprio grupo se surpreendeu. A disponibilidade e acesso ao corpo do outro, a exposição, a nudez e o toque foram os principais pontos reconhecidos por essa influência.
Com o avançar dos ensaios, o grupo começou a passar por uma série de exercícios pré-expressivos, os quais traziam uma imagem a qual interessava-nos muito enquanto dramaturgia performativa. Você se sente atuando? Essa foi a pergunta que nos guiou até o final do trabalho. Em todos os exercícios e improvisos que surgiam, a busca era de uma não-intepretação e sim uma reação performativa, quase um domínio da inteligência do corpo. A tentativa dessa não-interpretação era evitar uma construção que percorresse primeiro pelo racional e seletivo, e sim a busca por uma reação quase orgânica de sobrevivência desse corpo, um corpo-em-risco. Todo esse processo da construção da performance Sabor, perpassa por essa idéia que começo a vislumbrar de corpo-em-risco. É uma idéia ainda prematura desse corpo exposto a todo e qualquer estímulo, seja ele sensorial, emocional, ou qualquer estímulo novo ao corpo, que exija dele uma reação instantânea, e que essa reação por si já se torne expressão artística. A questão que surge é: se esse corpo-em-risco reagindo é artístico, quando ele deixa de ser artístico e se torna cotidiano? Questão a se refletir. Durante o processo de construção dramatúrgica da performance, o ponto mais difícil de se lidar foi com a repetição durante os ensaios. A automatização e a perda desse risco esvaziavam o trabalho aos poucos, por mais que novas cenas fossem surgindo, o excesso de marcação tirava toda a fluidez da performance.
Aos poucos os performer´s ganharam confiança e entenderam o processo e a performance, dando maturidade para se discutir cada opção estética e expressiva. A verticalização agora era naquilo que mais existia de limite pessoal e que houvesse ligação com O Banquete de Platão, cada escolha, cada opção era discutida e deixada em aberto, caso o performer sentisse que aquele era o seu limite, teria então, duas opções, ou enfrentava ou recuava. O início foi marcado com muitos recuos, mas desde o momento em que foi vivenciada a nudez no ensaio, mesmo que tivesse sido agradável ou tranqüila a todos, o grupo tornou-se mais permissivo aos comandos
Cortar, lamber, auto-flagelar, despir-se, o grupo foi encontrando eco nessas ações mais perigosas, mais desafiadoras tornando a coragem aliada dessa criação. Além das experiências práticas, outro comportamento foi o estímulo à escrita. Durante todas as etapas do processo, os performer´s sempre tiveram voz no blog, dividindo, questionando, produzindo textos ou mesmo pesquisando aquilo que reverberava neles enquanto material poético. Aos poucos outra questão foi levantada: e quando o que eu faço se torna ridículo? Um dos receios nesse processo era que tudo se transformasse em qualquer coisa. Por mais que houvesse discussões, análises e reflexões, levar o trabalho para um terreno que não é agradável de assistir, que é desconfortável, ou que expõe muito, gera a insegurança da criação. Escutando a trilha, e relendo todas as anotações, confesso que a cabeça deu um nó, uma explosão, e depois virou a calmaria. A meu ver, esse discurso de Platão é uma destruição do Amor. No momento em que defino que isso é amor e isso NÃO é amor, transformo em palavras um sentimento, ou melhor, traduzo uma experiência pessoal. Cheguei a definição de que todo aquele discurso platônico sobre o AMOR, nada mais é do que uma destruição do próprio numa tentativa de construção. Eis que surge uma luz à criação. As experiências começaram a seguir uma linha mais destrutiva do amor, do tesão. Não me interessa falar do amor nuvem, por mais que eu ache lindo, prefiro ir no conflito, naquele ponto o qual as pessoas pulam: o sexo. Todos sentem prazer, tesão, se masturbam, já assistiram algum filme pornô, já pensaram coisas proibidas, enfim, todos já passaram pela zona proibida ou não falada, pelo menos nós do elenco. Como exercício, pedi a todos que apresentassem cenas românticas, e todas, exceto a de um dos performers, seguiu a visão do amor nuvem, que apresentava uma coisa quase "brega", e isso era bacana de ver, pois mesmo os que realizaram a cena demonstravam aquela sensação de: Que coisa brega eu estou fazendo! Isso ocorria por causa dos elementos, dos textos ou das intimidades utilizadas como cena. Não era ruim, até por que acredito que tudo é material, sem julgamentos de valor, mas esse brega é como eu enxergo esse amor nuvem, enquanto diretor. Foi um bom experimento, até por que saíram coisas bem diferentes e que puderam ser utilizadas, e mesmo não sendo, serviram enquanto exercício artístico. Todo o material era a destruição da vida, do outro, do amor. Ou eu destruo o amor, ou ele me destrói.
Após muita reflexão, optei pelo caminho que já estava sendo refletido. Meu objetivo não foi retratar o amor nuvem, e sim ir a um lugar menos confortável pra mim. Não me interessa buscar caminhos fáceis, e sim ir naquilo que evitam trabalhar, que evitam falar, e que evitam até assistir. Quero o feio, aquele local do nojo, quero ir contra Platão. Sempre quis. Experimentamos a nudez com a comida. Cada vez mais percebia que esse texto do Banquete, é um vômito discursivo, quatro homens vomitando e competindo quem melhor reflete um tema. Texto machista, chato e vomitado. A performance puxou uma nova estrutura, mais de ataque direto, mais ofensiva. O prazer belo se transformou no prazer da dor, da carne, do sexo, do nojento. Estruturamos a performance com uma atriz a menos, que por motivos de incompatibilidade de horário precisou sair do processo, mas nos acompanhou da mesma maneira com contribuições intelectuais. Experimentamos o vômito enquanto estrutura de cena. Novo roteiro, novo vinho, mais agressivo.
Realizamos um ensaio aberto pra turma. A ansiedade foi bem grande em colocar a prova todo um processo que estava sendo amadurecido ainda, longe de chegar a etapa de "mostragem". Elenco ansioso, porém muito entregue. Me surpreenderam nas cenas, e como sempre, alguns erros de estrutura, como a perda do tempo da cena, nada que não pudesse ser trabalhado. Alguns pontos foram levantados e observados. O vômito afasta as pessoas, mas ninguém deixa de assistir, cria-se um ambiente quase constrangedor pelo que estava sendo mostrado em cena. A performance precisava amadurecer ainda mais, o que de fato ocorreu com o tempo de ensaio e fixação de roteiro. Realizamos mais um ensaio aberto. Dessa vez o objetivo era apresentar para pessoas que desconheciam o trabalho. Resultado: quatro saídas para vomitar do público. Os comentários eram bem interessantes ao final. Comparavam os performers a animais, a sujeira, esgoto, a nudez não mais incomodava, mas era bom de olhar o corpo naquele estado. Já os performers foram muito bem, mas perderam um pouco o controle ao final da performance, com muito vômito e o cheiro muito forte na sala. A opção por fechar as janelas para o cheiro permanecer no local misturado a comida, tornou difícil a permanência no ambiente. O interessante de observar é que cada vez mais conseguíamos traçar o discurso da performance. O prazer antes questionado na sala não é para o público, mas para os performers. O vomitar é devolver a Platão todo aquele discurso verborrágico e cansativo. É o corpo orgânico devolvendo ao mundo seu recheio, todos seus prazeres de forma verborrágica e "vomitativa". A opção pelo arroz e feijão foi uma maneira de aproximar todas as classes, todos os paladares, todas as refeições, do mais pobre ao mais rico, aquela comida que todo dia devoramos cegamente e cotidianamente.
Esperei alguns dias para conseguir escrever sobre o processo. Precisei refletir, repensar, e analisar esse estágio da criação da performance Sabor – Primeiro Recheio. Meu caminho foi traçado por uma serendiptidade do processo. Em determinados momentos me vi sem rumo, sem destino com tudo aquilo de material que eles traziam. Começamos a traçar uma dramaturgia a partir de palavras, de estados, de sentimentos e a tentar estabelecer relações entre eles. Me afastei da proposta inicial de tentar abordar a relação corpo/comida/sabor/saber e a partir para o prazer, o sabor da dor, o amor proibido, o amor sujo de comida que se torna sujo de valores, a entrar na zona do escatológico, o devorar-se, devorar o outro, oferecer –se. Assumir a performance enquanto obra, aceitar o corpo enquanto material e mídia daquilo que estava sendo construído. Sempre condenei qualquer tipo de auxílio antes de entrar em cena, mas para esse trabalho era exigido que cada intérprete bebesse uma garrafa de vinho para que todo o vinho do banquete fosse surgindo de dentro dos intérpretes. Se Platão apresenta um discurso verborrágico, vomitado sobre o amor, eu em minha prepotência de criador, devolvo e brindo a morte de Platão com o vômito dos performers e vinho fermentado de seus corpos. Eu devolvo a Platão o recheio de que somos feitos de verdade, vômitos, prazer, urinas, salivas e desejos. O Sabor – Primeiro Recheio tornou-se um trabalho indo contra Platão, propondo apresentar aquilo que nos recheia e nos torna desejo, carne e censura. Apesar de todo o percurso de crises, serendipidades, esse trabalho me marca na possibilidade de fazer algo que eu ache feio, sujo, nojento, mas que nele ainda exista uma poesia e uma reflexão, e a possibilidade da aceitação de tornar arte aquilo que eu não abordaria ou teria curiosidade.